Tem espetáculo que eleva seu nível de exigência de forma retroativa: faz tudo que você viu ultimamente parecer “menos bom” do que você achou que fosse. Seguramente, leva muito tempo para que algo assim apareça diante de si, por mais assíduo que se seja nas salas de teatro. De tempos em tempos, o espectador é presenteado com algo verdadeiramente arrebatador, e você percebe isso quando não encontra palavras para descrever suas impressões (e seu próprio estado) ao fim da sessão. Teatro da melhor qualidade, “BR-Trans” é a síntese desse parágrafo.
Monólogo documental do cearense Silvero Pereira (de “Uma Flor de Dama”), a peça teatral põe em cena fragmentos de histórias reais de travestis, transgêneros e transformistas. Ainda que rara, essa não é por si só uma proposta inovadora. Na mesma sala do CCBB, esteve em cartaz antes “Sexo Neutro”, espetáculo com a mesma temática. O que diferencia “BR-Trans” de outras abordagens é o oposto da sensação de mergulho no assunto – porque isso denota um olhar externo entrando naquele universo, semanticamente de cima para baixo. Em cena, Silvero apresenta o mundo trans de dentro para fora. Não é um olhar de exotismo, tão comum no audiovisual, que tende para o extremo do tratamento glamoroso ou underground. Não é sequer um olhar, aqui nesse projeto. É voz. É dar voz a um manifesto artístico-cultural. O ator, que assina o roteiro, escrito a partir de sua convivência com trans do Ceará e do Rio Grande do Sul, está entranhado nessa realidade e inicia a encenação apresentando a si e ao seu alterego, Gisele Almodóvar. A partir daí, o espectador pode se questionar se Gisele é só um personagem (ele diz que a criou para um espetáculo anterior e “hoje em dia não sabe mais onde começa ela e termina ele”) ou se realmente existe – em síntese, se Silvero é só um ator ou também um travesti. Ou, também, se essa distinção faz sentido. Uma página pessoal criada no Facebook só para a Gisele faz crer que ela ultrapassa o limite cênico e isso é um grande ganho, porque prova que, ao invés de um mergulho, “BR-Trans” é a Princesa Ariel que sai do mar para falar com a gente. É especialmente feliz que uma pessoa inserida na situação trans possa verbalizar sobre seu universo para a plateia, em vez de um ator enquadrado na heteronormatividade em busca de um papel peculiar como desafio.
Acompanhado do músico Rodrigo Apolinário ao teclado, Silvero faz uma interpretação visceral. O que tem de ficção e de verdade ali não importa. O que é ele, o que é ela, o que são elas, o que são personagens… tudo isso se torna menor diante do que ele apresenta, em 70 minutos de pura energia, exposição e entrega total. Ótimo ator, ele dá conta de vivenciar histórias dramáticas e engraçadas, com finais tristes e felizes, com muita sagacidade. Monta-se, desmonta-se, fica de cueca, penteia o cabelo, passa batom, canta e literalmente descasca um abacaxi aos olhos do público hipnotizado. O que impressiona tanto? Possivelmente, a maneira como ele faz enxergar uma realidade conscientemente invisível para tantos. Mais de 400 pessoas trans são assassinadas por ano no Brasil e ele martela isso. São mortes tratadas como menores pelas autoridades e, em busca de alguma justiça, Silvero/Gisele lista uma a uma em uma projeção no cenário, enquanto fala sobre a necessidade de chorar por esses crimes. A discriminação é, certamente, o fio condutor da montagem, direta ou indiretamente, dependendo do momento. Mas é a maneira como tudo é introduzido e apresentado que fisga a plateia: o tom é confessional, natural, de desabafo.
A dramaturgia do Silvero é tão acertada, com uma personagem levando a outra, um caso puxando o outro, que o clássico início, meio e fim não se justifica. Tudo é tão convincente, que a impressão é de assistir mesmo ao desabafo de uma pessoa, e não ao trabalho de um ator, o que é formidável. A direção de Jezebel De Carli (de “Desvio”) é perspicaz e controla de maneira ímpar cenas aparentemente descontroladas, com marcações fluídas. É importante falar também sobre a cenografia de Rodrigo Shalako e a iluminação de Lucca Simas. O cenário traz um baú, um espelho de camarim, livros, revistas, jornais espalhados pelo chão e uma janela ao fundo. Nada demais. Suficiente. Já a luz, importantíssima para a encenação, vem toda de objetos cênicos, como luminárias e abajures, que o ator acende e apaga dependendo do seu momento performático – porque ele é extremamente performático. Seu número de “Geni”, de Chico Buarque, é bem iluminado, com toda clareza que a história da travesti se apresentando no Municipal merece. Mas há muitos momentos obscuros e introspectivos, também. Quanto à trilha sonora, é um atrativo à parte, com canções que vão desde um grupo do Ceará até à banda inglesa Florence + the Machine. O personagem se apropria de tal forma de “Shake It Out” que será impossível ouvir a música novamente sem se lembrar dele – para sempre. Cause looking for heaven, found the devil in me.
Por Leonardo Torres
Pós-graduado em Jornalismo Cultural.
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SERVIÇO: qua a seg, 19h30. R$ 10. 70 min. Classificação: 16 anos. Até 6 de setembro. CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil – Rua Primeiro de Março, 66 – Centro. Tel: 3808-2020.