
Primeiro trabalho da diretora francesa Ariane Mnouchkine no teatro brasileiro, “As Comadres” é uma comédia para toda a família. Com 15 atrizes em cena e mais cinco no coro, o espetáculo utiliza o humor e a linguagem do musical para tratar de inveja, traição, moralismo, ética, rivalidade, maternidade, velhice, ambição, aborto, prostituição e corrupção a partir do confronto de ideias e ideais em um grupo multifacetado de mulheres.

O texto original é do canadense Michel Tremblay e a montagem é baseada na versão musical criada pelo francês René Richard Cyr. A história se passa na cozinha de Germana, uma mulher que ganhou “um milhão de selos premiados” e precisa colá-los em milhares de cartelas para adquirir seus prêmios – que incluem todo um mobiliário novo para a casa em que vive com a filha. Para ajudá-la nesta missão, ela convoca amigas e parentes para uma noite de trabalho conjunto, sem imaginar que elas podem ter outras intenções, além de colaborar, para estar ali. A peça é divertidíssima. O autor, um homem, consegue tratar do universo feminino sem machismo, e o texto data de 1965. Chega a ser uma dramaturgia feminista. As personagens, trabalhadoras, são tão distintas entre si – algumas conservadoras, outras progressistas – que é fácil se identificar e se relacionar com uma ou algumas delas. Afinal, são comadres à mesa falando sobre a vida.
Por outro lado, a decisão de Mnouchkine de manter a concepção de René Richard Cyr inviabiliza adaptações importantes para a identificação ser maior. Se por um lado a peça não define onde e em que época a trama se passa, por outro lado a questão dos selos não é esclarecida. Ganhou selos premiados? Ganhou de quem? Não teria que colar os selos para concorrer a prêmios? Por que ganha primeiro para colar depois? Se faz sentido para as plateias do Canadá e da França, é algo que o público brasileiro contemporâneo tem que relevar. Falta contextualização, e uma simples adaptação teria resolvido isso.
Um dado importante da concepção de Mnouchkine é que ela traz para o Brasil o modo de trabalho do Théâtre du Soleil, companhia teatral francesa da qual é fundadora. “As Comadres” conta com alternância de elencos. Assim, nenhuma atriz é titular de nenhuma personagem. São 20 artistas no elenco, dividindo 15 papéis. No dia em que não estão defendendo nenhuma personagem, participam do coro. É um modus operanti que exige o desprendimento da vaidade. O elenco traz nomes renomados, como Juliana Carneiro da Cunha (do próprio Théâtre du Soleil), Fabianna de Mello e Souza (da Cia. Os Bondrés), Laila Garin (de “Gota D’Água [a seco]”), Julia Marini (da Cia. Teatro Independente) e Maria Ceiça, todas com ótimos desempenhos. No dia em que assisti, vale destacar ainda o canto e a atuação de Janaína Azevedo (de “O Homem do Futuro”) como Germana, e as interpretações de Ana Achcar, Gabriela Carneiro da Cunha (de “Ocupação Rio Diversidade”), Ariane Hime (de “Mercedes”), Iza Eirado, Leda Ribas (de “Arsênico e Alfazema”) e Sirléa Aleixo (de “Sintonia Suburbana”), que faz o público rir com facilidade.
Outro ponto interessante é que as músicas criadas por Daniel Bélanger, com tradução de Julia Carrera, quase sempre entram para sublinhar a comédia. São letras bem-humoradas, pouco levadas a sério. As atrizes cantam, em solos ou em grupo, acompanhadas apenas de dois instrumentistas, sobretudo uma tecladista. A caprichada direção musical de Wladimir Pinheiro, no entanto, não permite que esses números musicais encolham pelo minimalismo. Pelo contrário, a magia acontece e, com tão pouco, “As Comadres” inflam e as músicas enchem o teatro.
Os figurinos assinados por Tiago Ribeiro são basicamente vestidos simples abaixo dos joelhos e, no caso de algumas personagens, como a da prostituta, o vestuário tende ao estereótipo. O cenário, criado por Mina Quintal, mostra uma cozinha teatralizada, com cortinas vermelhas no fundo e um segundo andar, onde todo o elenco fica enfileirado e visível quando não está em cena, com a iluminação estável de Hugo Mercier. As atrizes estão em tempo integral no palco, por vezes atuando mesmo que suas personagens nas cenas.
“As Comadres” é uma ótima pedida. Pelo riso, o espetáculo põe o dedo na ferida em nossas desvirtudes enquanto seres humanos e nos convida a repensar nossa postura em diversos aspectos.

Ficha técnica
Texto Original: Michel Tremblay
Versão Musical Original: René Richard Cyr
Músicas Originais: Daniel Bélanger
Supervisão Artística: Ariane Mnouchkine
Direção Musical: Wladimir Pinheiro
Elenco: Ana Achcar, Anna Paula Secco, Ariane Hime, Beth Lamas, Fabianna de Mello e Souza, Flavia Santana, Gabriela Carneiro da Cunha, Gillian Villa, Iza Eirado, Janaína Azevedo, Julia Carrera, Julia Marini, Juliana Carneiro da Cunha, Laila Garin, Leda Ribas, Lilian Valeska, Maria Ceiça, Sirléa Aleixo, Sonia Dumont e Thallyssiane Aleixo.
Musicistas: Catherine Henriques e Karina Neves
Tradução: Julia Carrera
Figurino: Tiago Ribeiro
Cenário: Mina Quental
Iluminação: Hugo Mercier
Preparação Vocal: Sonia Dumont
Letras: Wladimir Pinheiro e Sonia Dumont
Assistente de Direção: Hélène Cinque e Tomaz Nogueira da Gama
Cenotécnico: André Salles
Camareira: Ana Flavia Massadas
Assessoria De Imprensa: Factoria Comunicação
Projeto gráfico: Bruno Dante
Fotógrafo: Guga Melgar
Coordenação de Produção: Ariane Mnouchkine, Fabiana De Mello E Souza, Julia Carrera e Juliana Carneiro Da Cunha
Direção de Produção: Bárbara Galvão, Carolina Bellardi e Fernanda Pascoal – Pagu Produções Culturais
Produtor executivo e diretor de palco: Fernando Queiroz
Assistente de produção: Luciano de Lima Pinto
Realização: FMS Produções
_____SERVIÇO: qui a sáb, 19h; dom, 18h. R$ 30 (ou R$ 7,50 para associados Sesc). 90 min. Classificação: 12 anos. Até 19 de maio. Teatro Sesc Ginástico – Avenida Graça Aranha, 187 – Cnetro. Tel: 2279-4027.